domingo, 21 de outubro de 2012

Corte Epistemológico

Nunca neguei que sou noveleira. Falem mal o quanto quiserem, mas a verdade é que parte do meu caráter foi formado pelas novelas da Globo. Fui uma criança de apartamento sim, praticamente criada por uma empregada (não gosto muito desse termo, mas acho todos os outros eufemismos muito forçados) amante de novelas até hoje. Com ela, e com o Video Show, aprendi quais tramas tinham feito história antes de eu nascer, e quais valiam realmente a pena ver de novo. Também com ela acompanhei, vivi e comentei ttantas outras. Mas a verdade é que nunca fui uma noveleira acrítica ou passiva. Nunca acompanhei um folhetim televisivo que não me agradasse simplesmente por uma força do hábito. Muitas abandonei no meio do caminho por ficarem cansativas ou sem sentido. Algumas amei desde o início mas me decepcionei no capítulo final. Outras me recusei a assistir desde o primeiro ao último capítulo, me rendi a algumas com as quais não fui com a cara em princípio.
Nos últimos anos eu vinha criticando muito a safra das tramas globais, principalmente as do horário nobre, cada vez mais repetitivas e identificadas com seus autores medalhões. A última que tinha de fato merecido meus elogios foi a incrível A Favorita, escrita por João Emanuel Carneiro, o mais novo novelista que ganhara espaço no disputado horário das 21 horas. Não por acaso este mesmo João Emanuel, que aqui chamarei de JEC, é o responsável pelo último fenômeno televisivo nacional que me fez trazer este blog de volta à superfície. Uma obra prima que para mim representou um verdadeiro corte epistemológico na história da teledramaturgia nacional.
Sim! Ouso fazer um mal uso do conceito desenvolvido por Bachelard para explicar as rupturas e as mudanças bruscas que acontecem ao longo do processo de produção do conhecimento. Segundo este pensador, a evolução do conhecimento científico é descontínua e acontece por oposição aos sistemas anteriores, numa procura de ultrapassar os obstáculos epistemológicos que neles se patenteiam. Para mim, foi exatamente isso o que o JEC fez, só que ao invés ultrapassar um sistema científico, fez isso com um sistema teledramatúrgico (acabei de inventar essa palavra) que já estava dando no saco. Ou seja, o JEC está para a renovação da teledramaturgia, assim como o Paulo Barros está para a renovação do carnaval das escolas de samba cariocas.Você pode até argumentar que estou sendo exagerada em minha análise e que esta foi só mais uma novela de sucesso, mas o número de espectadores fiéis que #oioioi conquistou não me deixam pensar outra coisa. Mas o que me aflige na verdade é: Por que raios Avenida Brasil conquistou toda essa legião de fãs, tomados ou não pelo hábito de ver novelas? Por que ela foi tão superior àquelas que a antecederam? O que ela trouxe de tão diferente assim? Por que gente de todos os tipos, todas as classes, além de intelectuais raramente identificados com esse tipo de mídia se viram tão envolvidos por ela? Sim, são muitas perguntas, e provavelmente neste post não conseguirei abarcar todos os motivos que, juntos, fizeram da obra de JEC algo nunca dantes visto na história da televisão brasileira.Mas vou tentar.
O que todos costumam falar de cara é o fato de Avenida Brasil ter colocado no centro das atenções a nova classe C brasileira, em detrimento da tão retrata zona sul carioca, com seus protagonistas sempre tão lindos, cheirosos e bem vestidos. Sim, sem dúvida este é um fator que não deve ser desconsiderado, mas o sucesso da novela vai  muito além disso. Acredito que JEC tenha deixado muito a desejar em várias representações, e essa do subúrbio carioca, através do fictício bairro do Divino, foi a que mais me incomodou. Na minha humilde opinião seria mais válido se ele tivesse trabalhado com um bairro real, como Madureira, Bangu, Padre Miguel, Penha, Olaria... Mas de todo modo a mudança de espaço geográfico foi válida.
O que considero fundamental no trabalho do JEC foi a construção minuciosa da personalidade de cada um dos personagens (sempre uso no masculino mesmo) da trama. Uma "mocinha" que ninguém sabia se era mocinha ou vilã, que vinha para se vingar da "vilã" que ninguém duvidava ser de fato uma vilã, mas que todos desconfiavam que não tinha virado vilã só pelo prazer de ser ruim. Um protagonista que era um zé mané, facilmente passado para trás, corno por 12 anos, sem nunca ter nem suspeitado dessa possibilidade até que alguém fosse lá e esfregasse toda a verdade na cara dele, mas que de tão doce, humilde e boa praça, era adorado por todos que o assistiam. Uma mãe possessiva, um filho problemático (com todos os motivos que uma pessoa precisa para ser assim), um pai meio sem noção, uma irmã mala sem alça, um cunhado encostadão. Falando assim, parece uma família normal, mas não era. Todos tinham motivos de sobra para serem loucos e perturbados e cometerem todas as atrocidades que cometeram ao longo da trama. Talvez Freud conseguisse explicar isso melhor que eu.
No entanto, não há dúvidas de que a grande personagem dessa história foi a vilã, Carminha. Amada e odiada por todos, Carmen Lúcia merecia um post só para ela. Era má, mas não era fria. Não fazia nada sem um mínimo de peso na consciência.Sempre acreditei no amor da Carminha pelo Tufão e o último capítulo comprovou minha teoria. Ela sacaneou ele a vida inteira? Sacaneou. Mentiu, foi falsa, dissimulada, tinha um amante (que também amava profundamente) que sustentou durante todo o casamento com o dinheiro do marido... Mas ela realmente tinha amor por toda aquela fábula suburbana que construiu. A família exemplar do Divino, a esposa que administra a família com pulso firme, a mulher que é exemplo de virtude e dedicação para todo o bairro, que compra roupas pro marido e não deixa ele se vestir bem porque sente ciúmes. Carminha tinha juntado dinheiro suficiente para meter o pé e se livrar daquela família toupeira da qual ela tanto tripudiava. Seu amante Maxwell sugeriu milhões de vezes que fugissem para bem longe, deixassem tudo para trás e fossem viver como marajás em alguma ilha caribenha. Mas ela nunca quis. Por que ela iria? Para ela a vida estava perfeita daquele jeito. Tinha uma família que a respeitava, um marido que a mimava, o status de rainha do Divino e um amante para os momentos de tédio. No fundo Carmen Lúcia sempre quis manter a família que ela conseguiu conquistar com seus métodos escusos. Afinal ela perdera sua mãe bem cedo, tinha um pai asqueroso e passou parte de sua vida catando restos num lixão. A família era um bem muito mais precioso do que todo o dinheiro que conseguira juntar, o que não significa que ela não gostasse, e muito, de dinheiro. Quando toda a verdade veio à tona e tudo desmoronou, nada mais fazia sentido em sua existência. Matou seu amante porque apesar de amá-lo desde a infância, ele passou a não mais fazer diferença fora do contexto da Mansão. Seu pai propôs que eles fugissem para a Itália com 20 milhões, mas toda aquela fortuna não compraria de volta o respeito de sua família, além de não pagar o sacrifício de passar o resto da vida ao lado do homem que matou sua mãe, que a jogou no lixão e que, JEC nos deu a entender, teria dela abusado sexualmente. Preferiu se entregar para polícia, pagar pelo seus crimes e voltar para o lixão. O fim de uma vilã que o Brasil jamais tinha visto. Não morreu, não ficou louca, nem apodreceu na cadeia. Redimida, perdoou e foi perdoada, mas não ficou boazinha por causa disso. Continuou Carminha.
Diante de uma personagem como Carminha, poderíamos ter a sensação de que tudo ao seu redor era menor, mas não era. As empregadas que ela humilhava mereciam um sitcom só para elas. Zezé e Janaína foram tão incríveis, tão reais, tão gente como a gente que não merecem nada além do meu amor eterno.
Adalto, o burro mais inteligente do Brasil, podia não entender nada de nada, mas suas conclusões eram sempre as mais coerentes. Um cara que não deu certo por causa de um trauma de infância (olha aí o Tio Freud novamente), mas que tinha um coração puro e muito amor para dar para a sua grande paixão, também de infância, Dona Muricy. Dadau termina com Olenka, outra personagem secundária que também fez muita diferença. Me identifiquei demais com ela e quem me conhece (ou lê esse blog) deve entender o motivo que acho desnecessário explanar agora.
Suellen, uma ariranha, piriguete, vadia. Em qualquer outra novela seria mais uma daquelas mulheres vistas como simples aproveitadoras, que usam seus belos corpos para conquistar otários e conseguir uma vida boa de sub-celebridade. Mas Suellen amava mais o sexo do que o dinheiro. JEC preferiu não se utilizar de julgamentos morais em seu final e mostrou para o mundo que as libertárias também amam e que toda maneira de amor vale a pena.
Nilo, um subproduto do lixo. Aparentemente só um velho bêbado, sujo, explorador de criancinhas, mercenário, que não merecia nada além da morte. Aí JEC nos mostra que os bêbados também amam, e que talvez essa seja a espécie de ser humano que mais ama no mundo e, justamente por isso, bebem sem parar. Bebem para esquecer o tamanho da dor que um amor não correspondido causa. O amor do Nilo pela Mãe Lucinda se mostrou o mais intenso de toda a trama, e o Zé de Abreu que para mim era só mais um ator, tornou-se O Ator.
Max, Leleco, Jorginho, Ágatha, Tufão, Nina, Mãe Lucinda... Eu poderia ficar aqui a vida inteira falando sobre a riqueza desses personagens. Acho que tenho ainda mais 500 argumentos que comprovam que Avenida Brasil, foi, se não a melhor novela de todos os tempos, pelo menos a melhor do recente século XXI, mas com certeza você já está de saco cheio deste post tão imenso e seu olho já está estracnado. Inovadora, catártica, divertida e dramática... Ela foi tão diferente das outras que a única cerimônia de casamento que teve no capítulo final foi a de um homem com suas três mulheres. Só por causa disso JEC já merece minha eterna gratidão! Deixo esse texto, que nem de perto é digno da grandiosidade dessa novela, como um muito obrigado.

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